sábado, 8 de março de 2014

8 de março [Conto]


Faíscas de sol escorriam por rachaduras na mata fechada e Anaíde corria, sem parar, havia horas. Não sentia mais seu corpo, não sentia suas pernas inchadas rachadas por espinhos, pedras e galhos, não sentia sua pele cortada, seus braços dormentes, o suor misturando-se ao sangue em seu rosto sulcado de escaras. Sentia apenas sua respiração entrecortada e corria, com Adelina nos braços, sem saber para onde.

O abraço do sol engolia o ônibus parado, afogando em calor corpos suados e espremidos. Araci, saia preta abaixo do joelho, blusa escura recatada de manga comprida, o cabelo forçadamente liso, violentado pela escova para esconder sua origem pagã e preso num coque, óculos escuros, subiu os degraus devagar, esforçando o frágil corpo rebentado, empurrada pela correnteza, e esgueirou sua silhueta entre as festas que se abriam no paredão humano até encontrar um canto onde se segurar. Os óculos escondiam um olho inchado, ainda dolorido, e o outro salpicado de vermelho pela insônia.

Jacira estava em pé, segurando-se num corrimão, ao lado dela. Diferentemente de Araci, não disfarçava sua negritude que brincava sinuosamente nas curvas encaracoladas de seu cabelo.

Mariana subiu na parada seguinte, os olhos esverdeados reverberando um desalento rastejante que lhe escorria pelas entranhas, mergulhada numa aflição que a isolava do calor, do suor, do aperto e de tudo o que a rodeava naquele instante, uma aflição calma, persistente, que permeava todo seu corpo. Um rapaz passou atrás dela devagar, aproveitando o espaço apertado para demorar-se, esfregando-se levemente em seus glúteos. Perdida em sua ansiedade, Mariana nem percebeu que o moço estava de pau duro.

Uma senhora sentada na janela ao lado de Francisca, poucos centímetros à frente de Mariana, levantou-se para descer e o rapaz, de reflexos impecáveis, pediu licença a Francisca e ocupou o lugar. Vestia bermuda e ao passar roçou suas pernas peludas nas coxas vigorosas e macias de Francisca, que estava de shortinho, mantendo viva assim sua ereção. Pouco depois de sentar-se, porém, uma raiva violenta o sacudiu. Sentiu nojo, arrependeu-se de ter sentado ali, mas não havia mais o que fazer: o ônibus estava lotado e ele fora um burro. Estivesse na rua, sem tanta gente ao redor, daria uma puta duma lição naquela bicha, lhe ensinaria a deixar de safadeza na peia. Ainda por cima ninguém diria que não é mulher, não fosse pelo gogó que percebeu depois que se sentara e a mapeara de soslaio dos pés à cabeça.  O pior é que era linda, uma pele cabocla marmórea, de um bronze delicado e uma sinuosidade inebriante. Porca nojenta, dava até vontade de trepá-la! Aliás, se estivesse na rua só com ela seria o que faria: a treparia e depois a arrebentaria, para deixar de ser safada. Alguém, por sinal, já devia ter lhe dado uma boa surra, pois seu belo corpo estava visivelmente cravado de hematomas.

Lucy, que subira na mesma parada de Mariana, encontrou lugar em pé bem ao lado da cadeira de Francisca, perto de Araci. Estava radiante, tinha recebido flores de sua namorada e o dia resplandecia em seus olhos.

Lucy fora tudo o que quis ser, mas quase sempre no momento errado. Quis ser mãe, quis ser puta, quis ficar com homens, quis ficar com mulheres, quis brincar, quis ser séria, quis monogamia, quis amores múltiplos e sem amarras, quis ser casta, quis ser devassa, quis ser dona de casa, quis ser artista. Mas quando quis ser mãe, a chamaram de puta. Quando quis ser puta, quiseram força-la a ser casta. Quando quis ser artista, a violentaram para que fosse dona de casa. Quando quis viver amores sem correntes, lhe cobraram monogamia. Quando quis ser monogâmica, a acusaram de ter se vendido. Fora enjaulada em ciúmes e incompreensões, tivera feridas na pele e nas vísceras, superara hematomas e insultos, paus enfiados à força e mordaças que não conseguiram calá-la. Agora era feliz, mesmo afastada de sua família, e sorvia com avidez essa inusitada felicidade.

Francisca ia para a faculdade, estava voltando às aulas depois de um par de dias de convalescência. Frequentava pela manhã porque, desde que fora expulsa de casa, trabalhava nas ruas à noite. Não era raro que apanhasse; sabia que muitos homens procuram travestis para vomitar nelas pulsões recônditas e violências recalcadas e tinha se acostumado a isso. Mas a surra de três dias antes tinha sido mais feroz que de costume. Assim que entrara no carro percebera quem era o cliente, mas como este parecera não ter entendido, ou fingira não tê-lo, ficara calada. Mas quando a penetrara de quatro e ela fingira gemer de gozo, o homem a agarrara pelos cabelos, saíra de dentro dela e começara a espanca-la com brutalidade, sem medir a força dos socos e dos pontapés, arrastrado por um devaneio de aniquilação. Suja e devassada, a pele rasgada, ensanguentada e salpicada de hematomas, fora arremessada violentamente do carro e, antes de arrancar, o homem cuspira nela e a xingara, deixando-a semi-inconsciente no asfalto. Era seu tio, o mesmo que quando criança, quando ainda era Francisco, entrava amiúde em seu quarto fingindo querer brincar, o mesmo que apoiara irrestritamente o irmão quando o jogara nas ruas após descobrir que não era homem e que vestido de mulher não o reconhecera, mas reconhecera imediatamente seu gemido de falso gozo. Fora hospitalizada, tivera que passar uns dias em casa, teria precisado descansar mais, mas preferira retornar à faculdade para não perder mais dias de aula.

Mariana estava voltando ao trabalho depois de uns dias de licença. Uma angústia dilacerante a percorria, tinha brigado feio com a mãe. Fora rejeitada como filha. O dissera entre soluços, o coração esmagado numa aflição inominável, mas não poderia ter agido de outra maneira. Tinha lhe oferecido todo apoio, tinha se disposto a ficar com a criança e a cria-la, e ainda assim a filha quis… não conseguia nem pronunciar aquela palavra… e pior, sem avisar, chegando para ela com o fato consumado. A mãe de Mariana não sabia o quanto aquela decisão tivesse despedaçado suas entranhas. Não sabia e não interessava, o que a filha fizera era inconcebível, abominável. Não importava que tivesse acontecido nas primeiras semanas, não importava que sua filha teria revivido em cada gesto, em cada respiração daquela criança o… aquela palavra também era impronunciável. Enquanto o ônibus deslizava pela avenida naquela tórrida manhã, a dor que estraçalhava as vísceras de Mariana era mais intensa da que tinha sentido na sala clandestina de cirurgia.

Jacira ia para a casa da patroa para mais um dia de serviço. Apesar dos seus patrões não raro a ridicularizarem perante os outros apresentando-a como uma negra burra mas engaçada, gostava daquela família, se sentia parte dela. Naquele dia, Jacira estava angustiada com a ausência de notícias de seu filho mais velho, de dezesseis anos, que não aparecera em casa havia dois dias. Nunca tivera tempo para dedicar-se ao filho como gostaria, mas ultimamente o tinha perdido completamente de vista e uma dor sutil, densa e indecifrável, lhe embrulhava o estômago ao pensar no que podia ter lhe acontecido. A tranquilizava um pouco saber que a filha mais nova, de nove anos, estava na escola, onde a acompanhava todo dia Raimundo, seu atual companheiro. Uma pessoa doce, tranquila, diferentes dos vagabundos bêbados com quem tinha convivido durante anos. Só não sabia, Jacira, porque acordava todo dia muito cedo, antes da filha, que Raimundo despertava sempre a menina com carícias debaixo das roupas e que, antes de leva-la para a escola, costumava brincar com ela enfiando-lhe um dedo na vagina. Não sabia, embora quando criança seu padrasto tivesse feito com ela as mesmas brincadeiras.

Araci ia para o culto matinal. Nas últimas semanas, não passara um único dia sem ser arrebentada ou trepada à força pelo marido. Não conseguia encontrar motivos para que apanhasse, nem para que fosse estuprada. Era diversão, necessidade, rotina, uma brincadeira talvez. Quando, depois de vários dias seguidos de agressões, não conseguindo mais esconder os arranhões e os hematomas, falara daquilo com o pastor, o primeiro que lhe perguntou é o que ela tinha feito para ser castigada, se tinha sido uma má esposa, mas ela sempre fora uma mulher reta, uma esposa impecável, submissa, dedicada integralmente a seu homem, como mandavam as escrituras. Não, não havia motivo, ele devia estar possuído, era a única explicação possível e o pastor concordara, mas precisava ficar calada, aguentar em silêncio e orar com todas suas forças para que o Cão saísse do corpo do marido, nada de contar para quem quer que fosse, ela era uma mulher boa e com suas orações haveria de vencer essa luta contra o mal, contra o demônio que estava pondo à prova sua fé usando como instrumento seu companheiro de lar e de cama.

Os corpos de Lucy e Araci, em pé uma ao lado da outra, iam ficando cada vez mais grudados à medida que o ônibus detinha sua marcha para engolir mais pessoas. Num relâmpago fugaz a pele de Araci foi atravessada por um calafrio rastejante, inexplicável, e de repente, assustada, percebeu que seus mamilos tinham ficado túrgidos. Sufocados pelo sutiã, pareciam querer explodir. Sem entender, deu uma rápida espiada na moça ao seu lado e aquela visão a inquietou. Baixou o olhar e rezou mentalmente uma oração. Estava excitada, teria invadido sem receios a boca delicada, de traços suaves, daquela moça desconhecida de cabelo verde salpicado de gritantes mechas roxas. Satanás, não havia dúvidas, a estava pondo à prova mais uma vez.

Improvisamente, o ônibus parou em um cruzamento e um concerto de buzinas e gritos permeou a ar daquela cálida manhã. Policiais interditavam o transito para deixar passar, na avenida perpendicular, uma manifestação. Uma profusão sinuosa, rítmica de vozes, faixas, cantos, slogans, rostos pintados e corpos multicoloridos desfilava diante do ônibus. Um calor insensato, uma umidade rascante e os poucos metros quadrados em que dezenas de corpos estavam apinhados tornavam a permanência no ônibus insustentável. Muitos passageiros desceram para aguardar a marcha passar do lado de fora; outros, curiosos, foram olhar do que se tratava. Uma torrente feminil transbordava na vizinha avenida. Compassadas melodias entremeavam slogans aguerridos, carregados de indignação e raiva.

Jacira perguntou a outra passageira o que estava acontecendo. Ela não soube responder, mas lembrou-se que era 8 de março e, como tinha quase só mulheres na manifestação, pensou que se tratasse de algum ato ligado àquela data.

Lucy se entusiasmou, desceu do ônibus exultante e decidiu mergulhar na correnteza multiforme. Tirou a blusa e o sutiã, pediu a uma manifestante que escrevesse um slogan em seu peito com o batom que tinha na bolsa e se jogou alegre na multidão dançante. Volúpia arrebatadora, arrepiante sensualidade, Araci só conseguia enxergar aquilo tudo com excitação… o sinuoso rio das manifestantes, a desinibida ousadia daquela moça desconhecida do ônibus, as melodias embriagantes daqueles cantos. Era tudo obra de Satanás, o sabia, mas Satanás lhe parecia tão provocativamente atraente naquele momento.

Francisca observava com cautela, deixava-se inundar pelos slogans que ecoavam da avenida adjacente, que a arrebatavam, e um impulso arrasador a empurrava para aquela correnteza em cheia. Mas tinha medo, um medo entranhado em suas veias que lhe secava a garganta e lhe subia pelos ossos, imobilizando-a. A vontade de mergulhar naquele compasso e deixar-se dançar a inebriava, mas o medo era tão poderoso, estava tão incrustado em suas vísceras que a deteve. Uma caminhonete do Bope acompanhava a macha à distância e alguém, em pé na caçamba com uma câmera profissional, apontava seu objetivo para algumas manifestantes. Uma gota fria percorreu as costas de Francisca. Aquelas mulheres serão vigiadas, perseguidas? Ninguém poderia prever as consequências de se envolver naquilo. Decidiu, apenas, observar. Acendeu um cigarro, encostou-se numa parede e contemplou, extasiada, aquela multidão esbanjando gozo e ira.

Jacira ligou para a patroa, que atendeu o celular em plena depilação. Hoje se sentia de bom humor e dispensou Jacira do serviço, apesar de achar inconcebível que uma manifestação pudesse parar o transito em horário de pico sem mais nem menos e a polícia, ao invés de baixar o cassetete nas manifestantes, as ajudasse a atrapalhar a vida dos motoristas e das pessoas de bem. Mas, claro, com uma comunista no poder o que era de se esperar? Às vezes dava mesmo vontade de mandar-se para Miami. De qualquer forma, hoje era melhor se Jacira não fosse: era dia da mulher e sabia que o esposo voltaria para casa na hora do almoço, com flores para ela, e a levaria para um restaurante bacana. Depois, com ninguém em casa porque os filhos iam estar na escola e Jacira fora dispensada, o convenceria a fazer algo melhor do que voltar para o trabalho. Enquanto suportava estoicamente a ingrata dor da depilação do púbis, lia no tablet a notícia da rejeição que a Globeleza daquele ano tivera por parte do público. Não é de se estranhar, pensou. Apesar de ter um corpo bonito era preta demais, feia que nem Jacira, coitada. Tudo bem que para sambar nua na tevê tinha que ser uma mulata, mas negona mesmo, daquele jeito, era demais. A demora a enervava, queria que aquele suplício terminasse logo, ia ficar bem lisinha e macia como ele gostava, hoje haveriam de se divertir, o sacrifício para agradar seu homem valeria a pena. Enquanto suportava que arrancassem os pêlos de sua vagina, não sabia que seu marido estava trepando uma colega de trabalho numa salinha contígua ao escritório dele, de quatro, como corresponde a uma rapidinha no serviço.

Jacira ficou aliviada com a decisão da patroa e pensou que se fosse até a rua paralela talvez tivesse a sorte de encontrar um ônibus na direção contrária e conseguiria voltar para a casa antes da filha sair para a escola. Estava feliz, pelo menos naquele dia teria um pouco de tempo para ela, para a filha, para o companheiro e para sair em busca de notícias de seu menino. A patroa era gente fina. Enquanto se dirigia à outra rua à procura de um ônibus para voltar para casa, sua menina ia sendo acordada por Raimundo como todos os dias. Desta vez, quem sabe Jacira chegasse antes dele leva-la para a escola.

Cintilando em letras vibrantes, palavras tatuadas em faixas, cartazes, costas, colos rasgavam o intestino de Mariana. Não conseguia esquecer o nojo, a repulsa, a dor, o medo, a vontade de se matar depois daquilo que sofrera, mas também não conseguia esquecer a dilaceração, o abalo que a sacudira ao tomar aquela decisão e, sobretudo, não conseguia esquecer o olhar severo e triste, carregado de angústia e reprovação da mãe. Uma mão invisível apertava-lhe a garganta, ia sufocando-a aos poucos. Quis respirar. Suas pernas a levaram sozinhas, porque seu querer estava paralisado. Simplesmente, entrou na correnteza e se deixou carregar. Sua boca cortou o silêncio denso de seu estômago e começou a gritar, quase autonomamente, os slogans que escutava. Não sabia o que viria depois, não sabia mais nada. Apenas, caminhava.

Araci não resistira às investidas de Satanás. Numa ruela transversal, escondida por trás de uma caçamba, deslizara avidamente sua mão por debaixo da saia e a calcinha, que transbordava tesão e umidade. Fechou os olhos e as imagens daquela moça de cabelo verde e roxo de peito nu, pequeno e rijo, branquelo mas com os mamilos levemente bronzeados, e daquela multidão envolvente, melódica, sinuosa desfilaram pela sua pele e a arrastraram numa enxurrada selvagem, embriagadora. Gozou intensamente, um gozo vivo, autêntico, como havia muito tempo não sentia, gemeu e nem cuidou de abafar seu gemido, afinal com o estrondo da rua e da marcha ninguém iria ouvi-la.

Recomposta, voltou perto do ônibus e se deteve contemplando a manifestação. Se sentia leve, feliz, embevecida de pecado. Lembrou-se do facão com que cortava verduras, aquele com que uma vez o marido brincara retalhando suas costas, ainda guardava as cicatrizes. Chegando em casa o esconderia na saia. Se o marido voltasse a encostar um dedo nela, o desembainharia e deixaria Jesus guiar sua mão. A justiça dos homens talvez a condenasse, mas tinha certeza de que Jesus não o faria, ele era misericordioso.


Anaíde corria para não ser fenda negra, abismo carnoso em que despejar gozo de branco, corria para não ser vaca de parir, corria para não ser lasca de pele escura para peles brancas de macho se esfregarem, corria para não ser penetrada de quatro e torturada por ciúme por outra escrava só que branca e bem vestida, corria para não ser diversão familiar enquanto era esfolada a chicotadas amarrada nua a um pedaço de pedra, corria por Adelina, para que as duas conhecessem outra vida. Simplesmente corria, sem saber para onde.

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