sábado, 5 de maio de 2012

Anotações de um viajante - Cuba, 1997


Aos vinte e um anos, no remoto – nesta época de aceleração frenética da existência - final do século passado, mais exatamente em 1997, passei diversos meses em Cuba e, no dia a dia daquela ilha caribenha em pleno período especial (uma época de enormes privações que o país sofreu após a queda da ex-União Soviética, que sustentava sua frágil economia), aprendi que posso viver com muito menos do que antes acreditava que precisasse: intui, pela primeira vez, que as nossas “necessidades” não são “dados”, mas construções fruto da nossa dialógica com o real, construções nas quais intervém nossa biografia e o emaranhado conjunto de valores, conceitos, expectativas da sociedade de onde emergimos.

No interior da Isla Grande, como também é chamada, vivi uma experiência que me proporcionou o primeiro vislumbre de uma consciência que só dois anos depois adquiriria uma forma nítida. Durante uma viagem de mochila pelas províncias do interior do país, ao chegar à pequena cidade de Manzanillo no distrito de Bayamo, o mais pobre de toda a ilha, me acometeu uma violenta infecção intestinal e nem o posto de saúde mais próximo, nem o hospital onde depois me direcionaram dispunham de antibióticos para fazer frente à emergência. Uns amigos de lá, em cuja moradia extremamente humilde me encontrava hospedado, chamaram então um curandeiro, alegando que a prática comum na sua comunidade para este tipo de doenças era um tipo de massagem nos tornozelos praticado por estes mestres – reconhecidos pelo povo, mas não pelas autoridades médicas e políticas do país - da medicina “tradicional”. Desesperado, deixei que o curandeiro fizesse a massagem nos meus tornozelos, apesar de não cultivar muitas expectativas sobre os efeitos daquela “cura” posto que, em minha maneira disjuntiva de perceber o real, não conseguia enxergar conexão alguma entre aquela massagem e a bactéria que estava afetando meu organismo. Ao acordar no dia seguinte, por minha enorme e imensamente grata surpresa, estava completamente sem febre e quase sem mais cólicas. Poucas horas depois, estava em plena saúde.

Naquele dia, apesar de não ter esta consciência ainda nitidamente definida, comecei a vislumbrar a possibilidade de que saberes, formas de conhecimento e interação com o mundo ditas “não-científicas” não deviam possuir um valor cognitivo inferior, nem – e disso tinha sido testemunha – uma menor eficácia na produção de transformações no real do que as das consideradas “científico-racionais”.

Minha experiência em Cuba produziu também outra mudança de percepção importante. Lá vivenciei em primeira pessoa, sem mediações ideológicas, a dura realidade de um regime totalitário que exerce um controle obsessivo de cada aspecto da vida dos seus cidadãos. O que mais me impactou, entre vários outros aspectos, foi saber que cada quarteirão de toda cidade e aldeia da ilha possui “observadores” não revelados dos chamados Comitês de Defesa da Revolução, órgãos de repressão política, que podem ser qualquer pessoa e que por isso qualquer comentário, comportamento ou atitude “suspeitas” para o regime podem ser “delatadas” à polícia política pelos seus vizinhos, amigos ou conhecidos.

Também me estarreceu perceber que, em uma época de completo desastre econômico-social do país, o regime mesclava uma vazia retórica ufanista – resultava cômico, se não tivesse sido trágico, ver todo dia coloridos murais com rostos de Che Guevara estampados e empolgantes palavras alardeando o espírito solidário e íntegro dos cubanos pintados nas paredes de prédios decadentes em cujas esquinas meninas com quatorze ou quinze anos expunham seus corpos para turistas europeus famintos de sexo com menores de idade, e dentro de cujos velhos e despojados aposentos amiúde contrabandeavam-se charutos, rum e outros produtos ou “vendiam-se” e estrangeiros filhas ou irmãs para conseguir comer aquele mês, aquela semana ou até mesmo por aquele dia – à mais ferrenha vigilância da população.

À raiz dessas experiências, não só abandonei minhas antigas romantizações que projetavam sobre a realidade da ilha desejos, utopias e ilusões pessoais, mas adquiri uma consciência clara, que mantenho até hoje, de que nenhuma sociedade se transforma a partir de simples reajustes nas suas estruturas e relações econômico-políticas, muito menos se impostas à força. Nenhum “homem novo” se cria a partir de diretrizes vindas de cima para baixo: toda e qualquer mudança individual e coletiva na maneira como produzimos e interagimos com o real é um processo necessariamente e intrinsecamente global e dialógico que envolve a construção gradual e compartilhada de novas perspectivas cognitivas, afetivas, corporais, relacionais, a elaboração conjunta, baseada na reciprocidade de um mundo comum e nunca é inevitável e previsível, mas sempre inacabada, incerta e aberta ao inesperado e até ao (atualmente) impensável.

É inevitável: viajar, quando estamos abertos ao mundo e não encerrados em nossas prisões conceituais,  produz mudanças em nosso modo de pensar e de viver.