sábado, 5 de novembro de 2011

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera

Como prometi ao público que participou do segundo encontro do projeto cultural Café com Cinema, que idealizei e coordeno na PotyLivros em Natal, compartilho algumas reflexões – despretensiosas e desordenadas, seguindo o fluxo das minhas sensações - sobre o filme que foi exibido nessa ocasião: Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom, 2003), do diretor sul-coreano Kim Ki-duk.

A esplêndida fotografia do longa-metragem e os amplos planos panorâmicos do lago e da floresta ao seu redor em diversos momentos do ano com as respectivas transformações da paisagem, que varia com o clima, me deram a impressão de querer despertar uma atenção mais refinada, uma visão absorta que silencie o mais possível os ruídos internos e, como em uma sessão de meditação, permita que as imagens, sons e acontecimentos que se sucedem na tela penetrem num espectador com a mente aquietada e, portanto, receptiva, predisposta à reconstruir suas percepções e representações.

Algumas imagens, a meu ver, funcionam como autênticos koans visuais, com o propósito de desarticular a percepção linear, lógica e disjuntiva do real que predomina no nosso dia a dia de homens e mulheres ocidentais urbanos e abrir caminho a outras possibilidades de experiência do mundo. Uma delas é, em minha percepção, a da porta sem paredes que separa o quarto de dormir do resto do templo construído no meio de um lago onde o mestre budista e seu jovem discípulo, os protagonistas da narrativa, vivem. A imagem da não-porta é um exercício vivo de sensibilidade que golpeia visualmente o espectador, instigando-o a redefinir sua visão compacta, fechada e estilhaçada da realidade. Parece sussurrar-nos no ouvido: será que as paredes que erguemos entre nós e o mundo não são tão sólidas como tendemos a percebê-las?

Mais evocativa ainda é, aos meus olhos, a imagem da porta que se ergue no vazio, à beira do lago, que desde a primeira cena do filme me sacudiu levando-me a repensar os meus conceitos de “dentro” e de “fora”, assim como a minha percepção de ser humano e natureza. As paredes que compartimentam a realidade, que a estilhaçam em pedaços - parecem perguntar estas imagens - serão reais ou apenas uma das possíveis maneiras em que a mente humana percebe o mundo? Esses belos koans imagéticos sugerem outras possibilidades de experienciarmos o real.

O longa é também uma riquíssima mina de reflexões sobre a condição humana. O jovem discípulo, na primavera da sua infância, por viver desde a mais tenra idade em estreita “proximidade” com o ambiente não-urbano e não-humano que o rodeia revela uma completa familiaridade com as demais espécies vivas (peixes, sapos, serpentes...), que não tem medo de pegar nas mãos, experienciando com elas um contato epidérmico, contrariamente à moça de origem urbana que mais tarde chegará ao templo, que sente repulsão por outras espécies como transparece em uma cena em que, brincando, o rapaz coloca um grilo no ombro dela. Mas, simultaneamente, o jovem faz aflorar sentimentos típicos do humano, como o desejo de infligir sofrimento pelo puro prazer de fazê-lo, que o leva a torturar pequenos animais e mostra o “eu” se estruturando na percepção do menino que começa a perceber-se como independente daqueles seres e capaz de manipulá-los pelo seu próprio deleite, sendo incapaz, portanto, de compreender ou sentir o sofrimento deles. É preciso que o mestre - ao estilo Zen, cujos ensinamentos são transmitidos essencialmente através da vivência – faça experienciar à criança o mesmo sofrimento que ela tinha infligido a um peixe, a um sapo e a uma serpente para que a percepção dela, desestruturada por esta experiência totalmente nova e inesperada, se reconfigure em direção à empatia com as espécies que tinha torturado, permitindo-lhe sentir sua dor e sofrer pelo que fez.

A pedra que o mestre coloca nas costas do menino, reproduzindo o que ele tinha feito com outras espécies, pode ser vivida – como foi observado de forma a meu ver muito pertinente durante a discussão do Café com Cinema - como uma poderosa metáfora das pedras que todos carregamos: nossos conceitos, nossos hábitos mentais e comportamentais, nossos desejos, nossas obsessões, nossos fantasmas, nossos medos, nossas neuroses, nossas representações... tudo o que, num fluxo contínuo e incessante, (re)produz o nosso “eu” prendendo-nos a determinados estilos de vida e formas de ver o mundo, naturalizando-os a impedindo-nos enxergar ou conceber outras possibilidades.

Se em breves momentos do filme, como na fase outonal da vida do discípulo, o diretor parece reproduzir a dicotomia conceitual entre homem e natureza presente na visão de mundo urbanizada contemporânea, como por exemplo nas palavras do mestre ao tomar conhecimento dos acontecimentos da vida urbana do ex-discípulo (“Não conhecia de antemão como é o mundo dos homens?”, como se este fosse distinto do mundo “natural”), ao longo do filme inteiro emerge uma percepção não dilacerada do mundo humano e o não-humano. À afirmação do mestre ao discípulo no verão da sua adolescência, ao saber da relação sexual que manteve com a moça que foi levada pela mãe ao templo para se curar, é significativa: “Aconteceu por si mesmo, é a natureza”. O mestre parece perceber o ser humano como parte integrante de um único processo de permanente reconstrução do real, que entende como “a natureza”. O afastamento do mundo urbano não implica numa separação perceptivo-conceitual entre a natureza e o homem, como as belíssimas metáforas das portas sem paredes sugerem, funcionando como um potentíssimo operador simbólicode reorganização do pensamento.

O desejo sexual, o apego que a reprodução deste desperta e todas suas possíveis conseqüências (“A luxúria desperta o desejo de possuir e isso desperta a intenção de matar”, diz o mestre ao jovem discípulo quando decide devolver a moça curada à cidade) são, nessa perspectiva, manifestações da mesma natureza que pode produzir tanto compaixão e empatia com todos os demais seres vivos, como apego, ciúme e violência.

Outro aspecto sobre o qual o longa me instigou a refletir é a ciclicidade da existência humana, que o filme metaforiza através das estações do ano e, ao fazê-lo, insere-a no caráter cíclico de tudo o que existe. Não visão taoísta que impregna a percepção do real de muitos povos asiáticos miscigenando-se com os ensinamentos budistas, a existência é simultaneamente cíclica e irrepetível. Apesar de determinados processos se repetirem a cada certo período, nunca emergem com uma idêntica configuração. Todos os anos aparece a primavera, mas nunca é a mesma primavera: esta primavera é única e diferente da de todos os anos passados e de todos os vindouros. Isto é, a reprodução não é antagônica à unicidade e o cíclico não é antagônico à mudança permanente: essas categorias, que a lógica identitária opõe, são na mentalidade oriental complementares. A ciclicidade da existência metaforizada pelo filme de Kim Ki-duk me parece revelar uma percepção do homem como apenas mais um fenômeno que participa do incessante (re)surgimento, sempre diferente mesmo na repetição de padrões, da natureza.

Um comentário:

  1. Olá Antonino e amigos do Café com Cinema! Parabéns por este belo comentário e a iniciativa de pôr para exibição pública essa maravilhosa obra de arte. Parabenizo também este blog que possibilita a expansão e o aprofundamento do diálogo que foi proporcionado na PotyLivros.

    Para complementar a sua observação, gostaria de contribuir com este comentário:

    As estações, como a fisiologia humana, cumprem etapas e a compreensão de mundo está restrita às experiências que culminam na sabedoria e maturidade dos sentimentos.

    Se a natureza em volta do lago fosse um único organismo que passara por etapas fisiológicas, como a infância, o adolescer, a maturidade e a morte/renascimento, a mente iluminada, como a flor de lótus imaculada desabrocha nas águas lamacentas e tumultuadas dos desejos poderia ser o templo flutuante.

    Para ser o mestre, antes, deve-se aprender como um bom discípulo. Apesar da "semente" do mestre estar sempre latente dentro do templo/mente, as vontades da mente "ordinária" do discípulo tomam atitudes compatíveis às "estações" (ou paixões) de sua vida.

    Num viés ocidental (arrisco a comentar, apesar do pouco conhecimento) poderíamos pensar que o mestre representaria o Superego enquanto o discípulo está entre o Id e o Ego. Mas na filosofia budista (ao que interpreto), a análise poderia ser: o mestre como a Natureza da Mente de Buda (a centelha iluminada que compreende todos os fenômenos) enquanto o discípulo fixa-se no ordinário, na natureza que não compreende e, por isso, se apega ao ego.

    Outro aspecto de pode ser interpretado como a Roda da Vida, o Samsara, a circunferência do lago e o seu centro, a mente alerta. No fim do filme vemos que existia, no templo, uma imagem oculta (acredito, eu, de uma deidade compassiva) fixa-a, com esforço do novo mestre, no topo de uma montanha. Essa imagem observa como se estivesse de fora da roda do Samsara (o circulo do apego/aversão, do nascimento e renascimento) que representaria o lago e o templo, como se alcançasse o Nirvana (a extinção da existência cíclica).

    Espero ansioso por mais um outro Café! Um grande abraço do Arthur.

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