sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Dersu Uzala: o pequeno homem das grandes florestas

O último encontro de 2011 do meu projeto cultural Café com Cinema exibe o longa-mentragem Dersu Uzala de Akira Kurosawa, lançado em 1975 e baseado no livro autobiográfico homônimo do escritor e explorador russo Vladimir Arseniev, publicado pela primeira vez em 1923. Ambos reconstroem uma grande amizade surgida no começo do século XX entre as planícies e as montanhas da taiga da região siberiana do Uçuri, no extremo leste da Rússia asiática.

Arseniev e Dersu se conheceram em 1902, durante a primeira expedição do cartógrafo à taiga uçuriana em cujas montanhas, por acaso, encontrou o caçador de etnia gold. Fascinado por Dersu desde o começo, o Capitão, como o gold costumava chamá-lo, estreitou em pouco tempo um profundo vínculo afetivo com aquele pequeno homem da floresta. Nasceu entre os dois uma relação de intensa amizade, de mútuo respeito e de recíproca admiração. Durante as três expedições em que Arseniev ficou ao lado de Dersu – além da de 1902 em que se conheceram, estiveram juntos em mais duas de, respectivamente, 1906 e 1907 – o caçador lhe salvou a vida em várias ocasiões graças à sua atenção sempre desperta e aguçada, à sua sensibilidade sensorial extremamente afinada, à sua generosidade e o seu desprendimento. Da mesma forma, Arseniev contribuiu em algumas ocasiões a tirar o amigo de perigos, o ajudou na caça, serviu-lhe de prótese visual quando seus olhos começaram a falhar-lhe.

À medida que ia conhecendo melhor o gold, Arseniev o admirava e apreciava mais e sua relação simbiótica com a taiga, seus sentidos sempre vígeis e alertas, sua audição, seu olfato e sua sensibilidade tátil extremamente sutis, sua incrível capacidade de perceber os mínimos movimentos, as mais leves variações do ambiente ao seu redor, de prever mudanças climáticas, perigos ou circunstâncias favoráveis, de interpretar os sinais do vivo e do não-vivo, sua formidável intuição fizeram com que o Capitão se sentisse confiante quando estava do lado dele.

Arseniev e Dersu tinham distintas estratégias de interação com o ambiente: o caçador gold praticava uma atenção plena para as mais diversas manifestações da natureza, enquanto a atenção do escritor estava direcionada para elementos previamente concebidos como significativos dentro de suas grades conceituais. Tinham diferentes percepções da taiga e de si mesmos com relação a ela: Dersu a via como uma teia complexa de inter-retroações da qual se sentia apenas mais um fio; Arseniev a experienciava como um imponente cenário, um imenso palco no qual encenava o drama épico de suas expedições. Suas representações dos fenômenos do domínio do vivo e do não-vivo e seus sistemas de significações eram muito distantes. Mesmo assim, Arseniev e Dersu respeitavam e admiravam reciprocamente suas distintas maneiras de ser e estar no mundo, faziam-nas dialogar, reconheciam seu valor e sua pertinência, amiúde sua convivência fazia-as se compenetrarem, se contaminarem, se hibridarem.

As estratégias de interação com o ambiente de Dersu em diversas ocasiões “contaminam” Arseniev, despertando-lhe uma atenção mais sutil para as mais diversas manifestações e movimentos do ambiente ao seu redor. Além da pertinência – estabelecida por Arseniev pela “comprovação” das afirmações do amigo através da experiência - das inferências realizadas pelo gold a partir de indícios sensoriais percebidos no ambiente, o que mais “deslumbrava” o explorador era a atitude cognitiva a partir da qual Dersu as construía. Elementos para os quais não atentava devido à insignificância deles para o seu sistema de organização da experiência forjado em ambientes urbanos e científico-acadêmicos como, por exemplo, as configurações dos troncos de determinadas árvores e o que estava no chão debaixo delas, passaram a entrar em seu campo de percepção sensorial, sua atenção começou a direcionar-se para aspectos do vivo e do não-vivo que antes não considerava relevantes e, conseqüentemente, passavam-lhe despercebidos. A incrível – pelo menos para ele, nascido na cidade – afinação sensorial de Dersu instilava-lhe uma extrema confiança no amigo e estimulava-o a adotar pelo menos em parte estratégias de interação com os ecossistemas da taiga semelhantes às do caçador. Esta relação lhe propiciou muitos novos aprendizados. A convivência com Dersu também instigou Arseniev, o tempo todo, a re-definir representações que tinha construído sobre o mundo a partir de sua experiência urbana e dos sistemas de significados, de pré-conceitos dos quais tinha se impregnado em ambientes científico-acadêmicos, como a suposta dicotomia entre homem “primitivo” e homem“civilizado”.

Mas troca de estratégias de interação com o ambiente e de saberes entre o escritor e o caçador não afetou apenas Arseniev: Dersu também saiu enriquecido desta convivência, na qual aprendeu a observar a realidade de formas diferentes das que estava acostumado, como a associação entre seu aparelho perceptivo a algumas próteses tecnocientíficas (bússola, binóculo), e incorporou novos conhecimentos que lhes resultaram pertinentes para o contexto do qual sentia-se parte. Tudo isso mostra, a meu ver, quão rica foi a convivência de Arseniev com Dersu e como ela foi capaz de originar novos conhecimentos e novas formas híbridas de interagir e imputar sentido ao mundo.

Um recurso narrativo do filme de Akira Kurosawa expressa a intensidade da relação que se construiu entre os dois amigos. Uma seqüência de fotografias em preto e branco que imortalizam fragmentos do cotidiano na taiga de Arseniev, Dersu e os demais homens da expedição, com um fundo musical alegre e descontraído, pára de repente quando chega a uma em que os dois, sentados juntos aos cossacos, entrecruzam sorrindo seus olhares. A câmera realiza então um zoom que foca, em primeiro plano, este olhar entre o explorador e o caçador, um olhar que transmite à flor da pele os seus sentimentos de cumplicidade, de afeto, de respeito, de confiança e de admiração mútua.

Mas Kurosawa, a meu ver, vai além da reconstrução da amizade entre o explorador e o caçador: talvez intuindo essa recíproca codefinição de Dersu e da taiga, transforma esta última em mais um ator da história narrada, evitando a tentação de reduzi-la a um simples “cenário”. No filme os primeiros planos de figuras humanas são raríssimos: quase toda a ação desenvolve-se em planos de conjunto, em que humanos e não-humanos parecem ter a mesma importância dramática e há, além do mais, belíssimas e longas seqüências em que a taiga é a única protagonista.

Pelo que mostrei, a amizade entre Arseniev e Dersu pode ser concebida como uma vibrante metáfora do diálogo possível entre formas diferentes de conhecer e interagir com a realidade, entre cultura científica e saberes da tradição. Tenho plena consciência de que se trata de uma minha imputação de sentindo a posteriori e que, provavelmente, Arseniev e Dersu não percebiam desta forma a sua relação nem tinham - pelo menos conscientemente - a intenção de instaurar um diálogo/hibridação entre suas estratégias cognitivas e saberes. Porém, acredito ser pertinente considerar esta amizade nascida entre as montanhas da taiga do Uçuri como uma manifestação arquetípica, uma encarnação da complementaridade entre duas formas distintas, mas não opostas nem separadas, de conhecer, narrar e relacionar-se com o mundo.

A morte de Dersu, nesta perspectiva, também impregna-se de um forte valor simbólico. Fugindo da cidade, onde suas estratégias de interação com o real deixavam de ser consideradas pertinentes perdendo legitimidade, acaba sendo assassinado por bandidos - provavelmente de origem urbana – em uma zona de transição entre um centro urbano e a taiga. Desconhecido pelos habitantes da cidade, desapareceu do mundo tão anonimamente como nele tinha vivido, mergulhando na taiga da qual sempre fora um fio indissolúvel, enterrado numa sepultura improvisada às margens da floresta sem qualquer referência que o identificasse e que anos depois já tinha sido engolida pelo avanço da cidade. Um fim que se configura, aos meus olhos, como uma dolorosa metáfora do progressivo desaparecimento – que hoje assistimos cada vez mais – de inteiras culturas tradicionais e seus riquíssimos corpus de conhecimentos, formas de interagir com o mundo e de imputar sentido aos fenômenos, estilos de vida. Um desaparecimento tão anônimo como o de Dersu, paralelo às vertiginosas transformações de seus ambientes – com os quais suas formas de construir conhecimento e de viver são interdependentes – produzidas pelas exigências e os ritmos impostos pelo mito do “progresso”.

Mas se Dersu viveu, se hibridou com a taiga, desenvolveu sua incrível sensibilidade sensorial, forjou suas estratégias de interação com a realidade e construiu seus conhecimentos de forma totalmente anônima, longe dos olhos do mundo e evitando o mais possível o contato com a civilização urbana que - como ele sabia - o teria destruído, uma parte do imenso patrimônio de saberes e de formas de conceber e de relacionar-se com a natureza não-humana que o caçador gold encarnava foi reconstruído e oferecido à humanidade como um preciosíssimo legado pela arte de Vladimir Arseniev e de Akira Kurosawa. O livro de Arseniev teve uma fortíssima repercussão na Rússia czarista primeiro e soviética depois, transformando-se em pouco tempo em um clássico e sendo traduzido para diversos idiomas. O longa de Kurosawa venceu o Prêmio Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles (Estados Unidos) como melhor filme estrangeiro em 1976, o Prêmio David di Donatello da Academia Italiana de Cinema na categoria de melhor diretor de filme estrangeiro em 1977, teve um enorme sucesso de público em diversos países e é considerado pela crítica como uma das mais belas obras cinematográficas realizadas até hoje. Dersu viveu e morreu anonimamente na taiga, jamais soube o que é literatura e muito menos conheceu o cinema, mas através destas artes fragmentos da sua existência e parte dos seus conhecimentos e das suas formas de interagir com a natureza não-humana emocionaram, fizeram pensar, estimularam a ressignificar conceitos, se transformaram em lições de vida, de sabedoria e de relação com o ambiente para milhões de pessoas em sua Rússia natal e no mundo. Isso também, aos meus olhos, se imbui de um intenso valor metafórico: mostra que é possível, através da arte ou de uma ciência aberta e polifônica, promover uma ecologia dos conhecimentos que incorpore, valorize, dê voz às cosmogonias, os saberes e as estratégias de interação com o mundo de indivíduos e populações cujas culturas e estilos de vida são esquecidos, ameaçados e, com freqüência, discriminados pela ciência e cultura dominantes.

sábado, 12 de novembro de 2011

Na natureza selvagem (Parte 2)

Em um post de algumas semanas atrás disse que queria compartilhar com meus leitores duas experiências de viagem e de mergulho em ambientes não-urbanos que deixaram fortes pegadas em minha forma de ver o mundo. Naquela ocasião, contei minha aventura no Parque Nacional da Terra do Fogo. Deixem-me agora narrar-lhes a segunda experiência que mais contribuiu para forjar minha obsessão cognitiva pelas relações entre homem e natureza não-humana.

Estava viajando de mochila pela Nicarágua, na América Central, e fui passar uns dias na Isla Zapatera, uma ilha completamente coberta de floresta tropical seca – vegetação típica da região do Pacífico mesoamericana – com apenas duas pequenas comunidades humanas, uma em cada uma de suas extremidades, compostas por casas isoladas esparsas entre as colinas e os bosques. É a segunda maior ilha do imenso Lago Cocibolca, o segundo maior das Américas, um autêntico mar interno separado por uma faixa de terra de apenas vinte quilômetros do Oceano Pacífico. Em outras eras geológicas era um braço de mar e, quando a terra o fechou tornando-o um gigantesco lago, os tubarões que ali permaneceram adaptaram-se ao novo ambiente, reproduziram-se e deram origem à única espécie no mundo de tubarão de água doce. Constelado de ilhas e ilhotas de origem vulcânica, na sua margem norte-ocidental o lago vê erguer-se a delicada silhueta do vulcão Mombacho, com quatro crateras ativas, inteiramente coberto por uma manto de bosque nuvoso berço de uma riquíssimas biodiversidade.

Deitada no meio do lago, com o vulto da enorme Isla de Ometepe – a maior ilha lacustre do mundo, com dois vulcões ativos em sua superfície – às costas e o suave e viçoso perfil do vulcão Mombacho à frente, a duas horas de lancha da cidade mais próxima, sem água encanada e luz elétrica, com pouquíssimos humanos em seu extenso território e totalmente imersa numa densa selva, de onde vez por outra despontam petróglifos pré-colombianos, a Isla Zapatera representava para mim uma esplêndida oportunidade de afastamento temporário do meu universo de referência, das formas urbanas de organização do espaço e do tempo.

Apesar de estar novamente associado a muitas próteses (protetor solar, boné legionário, lanterna, repelente em spray e em creme, anti-histamínicos orais, óculos de sol com grau, entre outros elementos), o primeiro impacto foi um autêntico soco na cara. Um calor úmido e pegajoso despertava-me uma vontade constante de tomar banho, mas tinha pouquíssima água à disposição. Insetos de todo tipo e tamanho pregavam em minha roupa e nas partes descobertas do meu corpo, incomodando-me e assustando-me. O calor insuportável dava muita sede, tinha pouca água mineral disponível e não confiava na água das casas dos nativos, por não ser filtrada. Não havia nada a fazer a não ser caminhar nos arredores do bosque ou sentar em frente ao lago e contemplar a paisagem, tendo como únicas luzes as da lua e dos vagalumes assim que escurecia (evitava usar a lanterna para não descarregar a bateria).

Na primeira noite dormida em uma cama de campanha completamente coberta por um mosquiteiro, que aumentava exponencialmente a sensação de calor tórrido daquele lugar, via escorpiões passeando debaixo da cama ao meu lado; marimbondos enormes rondando o mosquiteiro; vislumbrava vultos e silhuetas de espécies não reconhecidas; escutava sons não familiares na escuridão da cabana; às vezes, sentia vontade de me levantar para beber água ou urinar e tinha medo de fazê-lo, apesar de dispor de uma lanterna, por causa dos animais que vislumbrava na escuridão. Com isso tudo, pude perceber mais uma vez o quanto meu olhar sobre a realidade, minhas reações às circunstâncias externas, minhas emoções e pensamentos, meus desejos, minha maneira de viver e organizar o tempo, minha forma de experienciar o mundo estão impregnadas até a medula, levam a tatuagem dos ambientes urbanos nos quais cresci e sempre vivi. A partir do segundo dia, caminhando na selva para conhecer petróglifos da civilização chorotega, que vivia na costa pacífica da Nicarágua antes da conquista europeia e usava aquela ilha para cerimônias rituais, a presença de um guia local conseguiu modificar em parte minha estratégia de atenção.

A mudança contínua da paisagem; o incentivo constante do guia para prestar sempre atenção ao caminho e não pisar nos lugares errados; a incrível diversidade de espécies vegetais e animais que a cada momento, inesperadamente, surgiam e sumiam; a exigência de estar totalmente presente para não perder os passos do nativo; aquela multiplicidade de formas, cores, cheiros completamente novos para mim, me confrontando o tempo todo com o inesperado, me despertaram aos poucos uma atenção mais refinada e aguçada. Nos dias seguintes, o que em um primeiro momento tinha me incomodado e assustado não me deixava mais tão rígido e nervoso como no começo, pois minha atitude perante os acontecimentos, minha estratégia de interação com o mundo tinha sofrido certa mudança: a atenção cada vez mais sutil que, pouco a pouco, a exposição ao ambiente no qual estava mergulhado tinha despertado em mim, conseguiu também silenciar pelo menos em parte, por momentos, os ruídos internos que inicialmente me dominavam, muitos dos quais eram exatamente os mesmos que impregnaram minha experiência na Terra do Fogo.

A interação com guias locais e moradores do lugar, cujas atitudes com relação ao ambiente me serviam de modelo e constante incentivo a agir de outras formas – mesmo que conseguisse reproduzir as deles só em mínima parte, pois suas sensibilidades sensoriais eram bem diferentes da minha – e cuja presença me dava confiança, contribuiu de maneira significativa para essa minha leve mudança de estratégia, que só não foi mais profunda porque minha permanência na Isla Zapatera durou apenas alguns dias.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

#OccupyWallStreet: sinal do (lento) despertar de uma nova consciência

Muito interessante o que emerge de uma pesquisa divulgada por Daniel Dantas Lemos, do Movimento dos Blogueiros Progressistas do Rio Grande do Norte (#BlogProgRN), no blog De olho no discurso. A pesquisa desmente completamente a representação prevalente do movimento de #indignados norte-americano como uma reação conjuntural à crise econômica por parte de uma suposta “juventude” (a maioria não são tão jovens assim) desempregada (a maioria dos ocupantes têm emprego fixo e renda média) e que não enxerga perspectivas de futuro, assim como a ideia de um movimento partidário (a grande maioria dos ocupantes não é de partido nenhum). À luz dessas informações, o movimento parece mais um sinal: o do despertar paulatino de uma nova consciência na população, insatisfeita não com a situação econômica do momento, mas com o funcionamento e a lógica do próprio sistema financeiro internacional e o sistema atual de representação democrática. É o sinal de que o sistema está desgastado e não responde mais aos anseios de participação das pessoas. Até onde este movimento vai levar é difícil dizer, mas indubitavelmente sinaliza que alguma coisa está mudando na consciência coletiva.

Reproduzo abaixo o post de Daniel Dantas:

Quem são os militantes do #OccupyWallStreet?

Uma pesquisa com cinco mil participantes desfez alguns mitos sobre os participantes da ocupação em Wall Street:

A absoluta maioria é de homens (61%) brancos (81,2%). Enquanto 44,5% são jovens de 25 a 44 anos, surpreende saber que 32% dos ocupantes têm mais que 45 anos. A maioria terminou um curso superior (60,7%) e são empregados em tempo integral (47%). Ou seja, nem são tão jovens e nem tantos são desempregados e desocupados. Aliás, apenas 12,3% estão desempregados e apenas 10% são estudantes em tempo integral. Quanto à renda, 46,5% ganham menos de US$ 25 mil dólares por ano. O mais surpreendente dos números, inclusive para aqueles que entendem ser esse um movimento partidário: 70,2% dos participantes se declaram apartidários ou independentes. Os democratas são 27,4% e há até republicanos entre os que protestam contra o sistema em Nova York (2,4%).

Fonte: http://blogdodanieldantas.blogspot.com

sábado, 5 de novembro de 2011

Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera

Como prometi ao público que participou do segundo encontro do projeto cultural Café com Cinema, que idealizei e coordeno na PotyLivros em Natal, compartilho algumas reflexões – despretensiosas e desordenadas, seguindo o fluxo das minhas sensações - sobre o filme que foi exibido nessa ocasião: Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom, 2003), do diretor sul-coreano Kim Ki-duk.

A esplêndida fotografia do longa-metragem e os amplos planos panorâmicos do lago e da floresta ao seu redor em diversos momentos do ano com as respectivas transformações da paisagem, que varia com o clima, me deram a impressão de querer despertar uma atenção mais refinada, uma visão absorta que silencie o mais possível os ruídos internos e, como em uma sessão de meditação, permita que as imagens, sons e acontecimentos que se sucedem na tela penetrem num espectador com a mente aquietada e, portanto, receptiva, predisposta à reconstruir suas percepções e representações.

Algumas imagens, a meu ver, funcionam como autênticos koans visuais, com o propósito de desarticular a percepção linear, lógica e disjuntiva do real que predomina no nosso dia a dia de homens e mulheres ocidentais urbanos e abrir caminho a outras possibilidades de experiência do mundo. Uma delas é, em minha percepção, a da porta sem paredes que separa o quarto de dormir do resto do templo construído no meio de um lago onde o mestre budista e seu jovem discípulo, os protagonistas da narrativa, vivem. A imagem da não-porta é um exercício vivo de sensibilidade que golpeia visualmente o espectador, instigando-o a redefinir sua visão compacta, fechada e estilhaçada da realidade. Parece sussurrar-nos no ouvido: será que as paredes que erguemos entre nós e o mundo não são tão sólidas como tendemos a percebê-las?

Mais evocativa ainda é, aos meus olhos, a imagem da porta que se ergue no vazio, à beira do lago, que desde a primeira cena do filme me sacudiu levando-me a repensar os meus conceitos de “dentro” e de “fora”, assim como a minha percepção de ser humano e natureza. As paredes que compartimentam a realidade, que a estilhaçam em pedaços - parecem perguntar estas imagens - serão reais ou apenas uma das possíveis maneiras em que a mente humana percebe o mundo? Esses belos koans imagéticos sugerem outras possibilidades de experienciarmos o real.

O longa é também uma riquíssima mina de reflexões sobre a condição humana. O jovem discípulo, na primavera da sua infância, por viver desde a mais tenra idade em estreita “proximidade” com o ambiente não-urbano e não-humano que o rodeia revela uma completa familiaridade com as demais espécies vivas (peixes, sapos, serpentes...), que não tem medo de pegar nas mãos, experienciando com elas um contato epidérmico, contrariamente à moça de origem urbana que mais tarde chegará ao templo, que sente repulsão por outras espécies como transparece em uma cena em que, brincando, o rapaz coloca um grilo no ombro dela. Mas, simultaneamente, o jovem faz aflorar sentimentos típicos do humano, como o desejo de infligir sofrimento pelo puro prazer de fazê-lo, que o leva a torturar pequenos animais e mostra o “eu” se estruturando na percepção do menino que começa a perceber-se como independente daqueles seres e capaz de manipulá-los pelo seu próprio deleite, sendo incapaz, portanto, de compreender ou sentir o sofrimento deles. É preciso que o mestre - ao estilo Zen, cujos ensinamentos são transmitidos essencialmente através da vivência – faça experienciar à criança o mesmo sofrimento que ela tinha infligido a um peixe, a um sapo e a uma serpente para que a percepção dela, desestruturada por esta experiência totalmente nova e inesperada, se reconfigure em direção à empatia com as espécies que tinha torturado, permitindo-lhe sentir sua dor e sofrer pelo que fez.

A pedra que o mestre coloca nas costas do menino, reproduzindo o que ele tinha feito com outras espécies, pode ser vivida – como foi observado de forma a meu ver muito pertinente durante a discussão do Café com Cinema - como uma poderosa metáfora das pedras que todos carregamos: nossos conceitos, nossos hábitos mentais e comportamentais, nossos desejos, nossas obsessões, nossos fantasmas, nossos medos, nossas neuroses, nossas representações... tudo o que, num fluxo contínuo e incessante, (re)produz o nosso “eu” prendendo-nos a determinados estilos de vida e formas de ver o mundo, naturalizando-os a impedindo-nos enxergar ou conceber outras possibilidades.

Se em breves momentos do filme, como na fase outonal da vida do discípulo, o diretor parece reproduzir a dicotomia conceitual entre homem e natureza presente na visão de mundo urbanizada contemporânea, como por exemplo nas palavras do mestre ao tomar conhecimento dos acontecimentos da vida urbana do ex-discípulo (“Não conhecia de antemão como é o mundo dos homens?”, como se este fosse distinto do mundo “natural”), ao longo do filme inteiro emerge uma percepção não dilacerada do mundo humano e o não-humano. À afirmação do mestre ao discípulo no verão da sua adolescência, ao saber da relação sexual que manteve com a moça que foi levada pela mãe ao templo para se curar, é significativa: “Aconteceu por si mesmo, é a natureza”. O mestre parece perceber o ser humano como parte integrante de um único processo de permanente reconstrução do real, que entende como “a natureza”. O afastamento do mundo urbano não implica numa separação perceptivo-conceitual entre a natureza e o homem, como as belíssimas metáforas das portas sem paredes sugerem, funcionando como um potentíssimo operador simbólicode reorganização do pensamento.

O desejo sexual, o apego que a reprodução deste desperta e todas suas possíveis conseqüências (“A luxúria desperta o desejo de possuir e isso desperta a intenção de matar”, diz o mestre ao jovem discípulo quando decide devolver a moça curada à cidade) são, nessa perspectiva, manifestações da mesma natureza que pode produzir tanto compaixão e empatia com todos os demais seres vivos, como apego, ciúme e violência.

Outro aspecto sobre o qual o longa me instigou a refletir é a ciclicidade da existência humana, que o filme metaforiza através das estações do ano e, ao fazê-lo, insere-a no caráter cíclico de tudo o que existe. Não visão taoísta que impregna a percepção do real de muitos povos asiáticos miscigenando-se com os ensinamentos budistas, a existência é simultaneamente cíclica e irrepetível. Apesar de determinados processos se repetirem a cada certo período, nunca emergem com uma idêntica configuração. Todos os anos aparece a primavera, mas nunca é a mesma primavera: esta primavera é única e diferente da de todos os anos passados e de todos os vindouros. Isto é, a reprodução não é antagônica à unicidade e o cíclico não é antagônico à mudança permanente: essas categorias, que a lógica identitária opõe, são na mentalidade oriental complementares. A ciclicidade da existência metaforizada pelo filme de Kim Ki-duk me parece revelar uma percepção do homem como apenas mais um fenômeno que participa do incessante (re)surgimento, sempre diferente mesmo na repetição de padrões, da natureza.